A hematologia é uma área rica e cheia de pequenos detalhes a serem explorados. A Beckman Coulter, pioneira no segmento, traz a Dra. Helena Grotto com uma série de textos sobre hematologia. Este versa sobre resultados espúrios nas contagens de plaquetas: pseudotrombocitopenia e pseudotrombocitose
Uma grande preocupação na rotina laboratorial é a prevenção de erros pré e pós-analíticos que possam comprometer a qualidade dos resultados dos exames e levar a um diagnóstico duvidoso. Um erro não detectado pode resultar numa investigação diagnóstica desnecessária e em um tratamento errôneo que pode colocar o paciente em risco (De la Salle 2019).
Um estudo feito por Plebani em 2010 mostra a proporção estimada de erros em cada uma das fases da realização dos exames. A fase chamada pré-preanalítica que antecede a chegada da amostra à bancada do laboratório é responsável pela grande maioria dos erros, seguida pela fase pós-posanalítica, quando o resultado do teste é liberado ao requisitante (Tabela 1).
Dentre os dados fornecidos pelo hemograma, a contagem de plaquetas ainda gera algumas dificuldades tanto na sua realização, como na interpretação de seus resultados, principalmente quando resultados espúrios são obtidos.
Erros pré-analíticos relacionados com as plaquetas
Interferem no resultado final das contagens de plaquetas:
– Relação sangue: anticoagulante – tanto o excesso como a diminuição da quantidade de sangue coletado podem interferir na contagem de plaquetas. Preenchimento insuficiente do tubo devido à dificuldade na punção venosa pode ativar as plaquetas, assim como um “inchaço” das mesmas, além de interferir nos testes de coagulação. Uma maior concentração de K3 EDTA pode alterar o volume das plaquetas (VPM).
– Lipemia: afeta a contagem de plaquetas e dos leucócitos.
– Hemólise, com fragmentação de hemácias ou microesferócitos aumentam erroneamente a contagem de plaquetas. (De la Salle 2019).
– Estocagem: o tempo entre coleta e análise das amostras não deve exceder 6 horas. Um sangue estocado à temperatura ambiente pode favorecer o crescimento de bactérias que podem causar uma falsa trombocitose (Kakkar N 2004). A estocagem a 2-8°C pode causar a aglutinação das plaquetas se o paciente tiver aglutininas a frio.
Na fase analítica
As contagens “manuais” feitas à microscopia tem sido substituídas progressivamente pela contagem automatizada das plaquetas, o que aumentou substancialmente a acurácia e a velocidade na liberação dos resultados. O uso da câmara de Neubauer e a contagem de plaquetas em microscópio com contraste de fase ainda tem a sua utilidade quando interferentes impossibilitam a identificação e separação das plaquetas nos sistemas automatizados, ou quando as contagens estão extremamente baixas, ou muito atípicas (Briggs et al 2007).
No entanto, é uma técnica demorada, subjetiva e os resultados tem um alto índice de imprecisão, com um coeficiente de variação interobservadores entre 10 e 25% (Harrison et al 2000). Já a técnica de Fonio, onde as plaquetas são examinadas em esfregaço sanguíneo corado é útil para estimar a contagem de plaquetas, se está baixa, normal ou alta, para observar alterações morfológicas ou a presença de agregados plaquetários, satelitismo, fagocitose de plaquetas, etc.
O número de plaquetas obtido por essa técnica é muito impreciso, tem alto coeficiente de variação e recomenda-se que não conste dos relatórios dos hemogramas. Em casos de necessidade extrema, essa “contagem” deve ser acompanhada de uma observação sobre a técnica utilizada.
Além da maior acurácia e rapidez a contagem automatizada fornece dados que auxiliam na identificação de alterações morfológicas ou mesmo a possibilidade da presença de interferentes que possam prejudicar a correta identificação e enumeração das plaquetas.
Plaquetas no sistema Beckman Coulter
O número e tamanho de plaquetas são determinados pelo princípio Coulter. Quando uma partícula (como uma célula) suspensa em um líquido condutivo passa por uma abertura contendo eletrodos em suas laterais, há um aumento momentâneo na resistência elétrica, gerando um pulso elétrico. O número de pulsos corresponde ao número de partículas contadas e o tamanho do pulso será proporcional ao volume da célula. As plaquetas são medidas em triplicata pelas três aberturas do equipamento. A contagem final corresponde à médias das três contagens. As plaquetas e as hemácias são contadas no mesmo canal e são discriminadas de acordo com os seus volumes, gerando os histogramas, onde no eixo y estão as frequências dos eventos e no eixo x o volume das partículas. (Figura 1).
Irregularidades na curva do histograma sugerem anormalidades de tamanho e de possíveis interferentes na contagem (Figura 2).
São geradas diversas mensagens que auxiliam na investigação das anormalidades na contagem ou identificação das plaquetas. As mensagens do sistema (em verde) são acompanhadas pelo “R” de revisão. Indicam que ocorreu um evento que pode ter afetado a operação do sistema ou a qualidade dos resultados, ou requer a intervenção do operador.
As mensagens suspeitas (em vermelho) são geradas por algoritmos internos, sugerindo que uma condição clínica pode existir na amostra, baseado na distribuição anormal das populações. Recomenda-se a revisão dos resultados com mensagens suspeitas.
Pseudo-trombocitopenia (PTCP) e pseudo-trombocitose (PTCT) nas contagens automatizadas
PTCP: contagens espúrias das plaquetas podem ocorrer em diversas condições, sendo a aglutinação EDTA-dependente a mais comum delas. Pode ocorrer em indivíduos saudáveis, mas são mais comumente observadas em condições patológicas como:
– Doenças autoimunes
– Doenças cardiovasculares e hepáticas
– Malignidade: câncer de mama, mieloma múltiplo, carcinoma neuroendócrino e timoma
– Sepsis
– Infecções virais
– Alguns medicamentos
Ocorre entre 0,1 e 2% dos pacientes hospitalizados, sendo mais frequentes (de 15 a 17%) em pacientes com diagnóstico de Púrpura Trombocitopênica Imune (PTI) (revisado em Zandecki et al 2007).
A PTCP EDTA-dependente é um fenômeno que ocorre in vitro; a quelação do cálcio pelo EDTA leva à uma alteração conformacional do complexo GPIIb-IIIa da membrana plaquetária, expondo um epitopo que se torna acessível à ação de autoanticorpos, predominantemente do tipo IgG, mas também IgA e IgM, que agem como uma aglutinina a frio e que reage com as plaquetas em in vitro, produzindo grumos, que não são reconhecidos como plaquetas pelos analisadores hematológicos (Figura 3). As aglutininas reagem mais fortemente na temperatura ambiente ou abaixo dela, mas podem reagir mesmo a 37°C. Desse modo, falsas plaquetopenias podem ocorrer, o que pode levar a diagnósticos errados e procedimentos desnecessários, como aspiração da medula óssea ou mesmo a transfusão de plaquetas.
Como os analisadores das séries DxH 800 e DxH 900 detectam a presença de plaquetas aglutinadas (Figura 4).
– Histograma de plaquetas irregular, mostrando população de plaquetas com volume acima de 20 fL;
– Histograma de leucócitos, onde as plaquetas agregadas podem originar um pico na extrema esquerda do gráfico
– Alarme de necessidade de revisão (R) ao lado da contagem de plaquetas
– Emissão de mensagem suspeita: Platelet clump (Agregados de plaquetas) e/ou plaquetas gigantes
Como solucionar?
– Analisar o esfregaço de sangue corado ao microscópio e observar possíveis alterações não só nas plaquetas mas também nas outras séries celulares
– Aquecer a amostra em BM a 37°C
– nova coleta usando outros anticoagulantes: citrato de sódio a 10% (fazer a correção da diluição após a contagem); ACD; heparina; fluoreto de sódio; oxalato de sódio; sulfato de magnésio: tem efeito inibidor da agregação, não precisa corrigir a diluição, não interfere nas outras contagens, tubos prontos disponibilizados comercialmente. (Schuff-Werner 2013). Recomendado nos casos de de PTCP a múltiplos anticoagulantes; Amicacina (5mg/mL incubar por 15’) adicionada ao tubo com EDTA; CPT: mistura de citrato 17 mmol/L, pyridoxal 5’-fosfato 11,3 mmol/L e Tris 24,76 mmol/L) (Nagler M et al 2014)
Outras causas de PCTP:
– Fagocitose das plaquetas por neutrófilos, também induzida por EDTA (Figura 5).
– Satelitismo plaquetário: aderência de plaquetas a neutrófilos e menos comumente a monócitos, formando uma roseta ao redor do leucócito. É um fenômeno in vitro, EDTA-dependente. Antígenos “escondidos” no complexo IIb/IIIa da membrana plaquetária são expostos na presença do cálcio do EDTA e reagem simultaneamente com o receptor Fcγ III (CD16) do leucócito (Figura 6).
– Presença de plaquetas gigantes também podem causar PTCP. São consideradas plaquetas gigantes aquelas com volume entre 10-20 µm, alcançando o tamanho dos leucócitos, daí poderem ser confundidas com os mesmos causando uma pseudoleucocitose associada com a PTCT. Na Figura 7 vemos como as plaquetas se distribuem normalmente no gráfico de dispersão de NRBC.
Na Figura 8 vemos uma amostra de sangue em que plaquetas gigantes e/ou grumos de plaquetas interferiram na contagem de leucócitos, como pode ser observado no histograma de leucócitos. Além disso geraram um histograma de plaquetas totalmente irregular e uma contagem de plaquetas não confiável, onde o alarme “R” recomenda a revisão dessa contagem. No gráfico de dispersão de NRBC uma população anormal formada por pontos verdes, ocupa a parte esquerda do gráfico e corresponde à população anormal de plaquetas. A mensagem suspeita “Plaquetas gigantes (Giant Platelets)” foi liberada.
Sugestão de algoritmo para liberação de amostras plaquetopênicas
Pseudotrombocitose (PTCT): tão importante quanto à PTCP, uma contagem falsamente elevada de plaquetas é igualmente relevante, em especial em pacientes com risco de sangramentos e na indicação da necessidade de transfusão plaquetária.
Fragmentos de leucócitos: células blásticas são mais frágeis e seus fragmentos podem interferir na contagem de plaquetas (Figura 9), tanto na análise por impedância como na óptica. O reconhecimento dessa interferência tem importância clínica porque uma plaquetopenia pode ser mascarada pela presença desses fragmentos.
Fragmentos de hemácias: podem gerar as seguintes mensagens:
A observação do histograma auxilia na identificação de possíveis interferentes (Figura 10).
No exemplo abaixo observamos que o paciente tem anemia com microcitose acentuada (VCM 63,5 fL), acompanhado de um RDW aumentado, além de um histograma de plaquetas estendido até 25 fL, que gerou uma mensagem suspeita de RBC Frag/Microcytes. A análise do esfregaço sanguíneo é mandatória, onde é possível verificar a presença de micrócitos, esquisócitos e alguns microesferócitos (Figura 11).
Presença de micro-organismos: a presença de bactérias, fungos ou trofozoítas de Plasmodium falciparum pode levar à falsas plaquetoses. A observação de bactérias no esfregaço sanguíneo mesmo em pacientes sépticos é uma situação rara, mas quando acontece pode alterar o histograma das plaquetas, desviando a curva para a região das pequenas partículas, com um pico correspondente às bactérias ou seus grumos (Figura 12).
Situação um pouco mais comum é o crescimento de bactérias em amostras não processadas dentro do tempo recomendado, ou colhidas em tubos não estéreis. Nesse caso a observação da lâmina de sangue corado vai revelar a presença dos micro organismos, provavelmente acompanhados de outras alterações morfológicas em leucócitos e hemácias que denotam que a amostra foi estocada por muito tempo e em condições indevidas (Figura 13).
Conclusões
Contagens espúrias de plaquetas são uma preocupação constante dentro da rotina laboratorial. Fatores pré-analíticos são responsáveis pela maioria dos erros, enquanto a presença de interferentes podem super ou subestimar a contagem das plaquetas.
Os analisadores hematológicos automatizados fornecem uma série de informações que auxiliam no reconhecimento dessas anormalidades. Cabe ao operador saber como interpretá-las, assim como ter conhecimento sobre as metodologias utilizadas e as suas limitações.
A observação microscópica do esfregaço de sangue continua sendo ferramenta essencial na identificação e confirmação de achados dúbios ou inconclusivos, garantindo maior precisão e acurácia nos resultados dos exames hematológicos.
Referências bibliográficas:
Campbell V, Fosbury E, Bain BJ. Platelet phagocytosis as a cause of pseudothrombocytopenia Am J Hematol 2009;84:362.
De la Salle. Pre- and postanalytical erros in haematology. Int J Haematol 2019;41(Suppl. 1):170-176.
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Harrison P et al. Immunoplatelet counting: a proposed new reference procedure. Brit J Haematol 2000;108, 228–235.
Kakkar N. Spurious rise in the automated platelet count because of bactéria. J Clin Pathol 2004;57:1096-1097.
Luo X et al. Pseudothrombocytosis due to small misshapen RBC and fragmented RBC in coexistence of beta thalassemia minor and secondary elliptocytosis. Int J Lab Hematol. 2021;00:1–3.
Nagler M et al. A case of EDTA-dependent pseudothrombocytopenia: simple recognition of an underdiagnosed and misleading phenomenon. BMC Clin Pathol 2014;14:19.
Plebani M. The detection and prevention of erros in laboratory medicine. Ann Clin Biochem 2010;47(Pt2):101-110.
Briggs C, Harrison P, Machin SJ. Continuing developments with the automated platelet count. Int J Lab Haematol 2007;29:77-91.
Schuff-Werner P et al. Effective estimation of corresct platelet counts in pseudothrombocytopenia using na alternative anticoagulante based on magnesium salt. Brit J Haematol 2013;162:684-692.
Zandecki M et al. Spurious counts and spurious results on hematology analysers: a review. Part I: platelets. Int J Hematol 2007;29:4-20.