Com um extenso currículo acadêmico e vasta produção científica, a médica Patologista Clínica, Dra. Leila Antonangelo, venceu o concurso para Professora Titular da Disciplina de Patologia Clínica do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, sendo aprovada por unanimidade para assumir a primeira e única titularidade existente da disciplina no Brasil.
“Uma patologista clínica raiz”, como seus ex residentes a denominam, a médica sabe que seu profundo conhecimento da disciplina é elemento-chave para discutir e colaborar com propostas e sugestões para ampliar a visibilidade da especialidade.
Em entrevista exclusiva ao Portal LabNetwork, a Profa. Antonangelo aborda as questões que podem justificar o reduzido número de residentes em Patologia Clínica no país e comenta sobre a qualidade do ensino em medicina e a formação dos futuros médicos. A especialista também foca nas múltiplas possibilidades aos que desejam atuar na Patologia Clínica, além de ações na residência que impactariam em grandes avanços na prática médica.
No mês em que enaltecemos as trajetórias e lembramos os desafios rotineiros das mulheres, é brilhante acompanhar a conquista de profissionais como a Dra. Leila Antonangelo que, como ela mesma cita, é a primeira mulher a assumir como diretora do Laboratório Central do Hospital das Clínicas da FMUSP em 80 anos. Confira a seguir:
Quais os grandes desafios que se deparou durante a sua trajetória atuando como Patologista Clínica?
Dra. Leila Antonangelo: O protagonista da especialidade é o laboratório clínico, cuja atividade central é a prestação de serviços em exames laboratoriais, motivo pelo qual, a Patologia Clínica, é considerada uma atividade “meio” que permeia todas as especialidades médicas e que também faz ponte com as ciências básicas através dos exames laboratoriais. Neste contexto, não é muito habitual o patologista clínico ter produção científica em uma única linha de pesquisa. Entretanto, se há a intenção de seguir uma carreira acadêmica, você precisa pensar em produção científica e em parcerias de pesquisa. Esse é um dos desafios da especialidade.
Isso pode ser também uma das explicações para a redução do número de residentes em Patologia Clínica?
Dra. Leila Antonangelo: Há vários fatores a serem considerados nessa questão, mas a remuneração e o mercado de trabalho exercem grande influência. Já passaram por mim quase uma centena de residentes e a maioria deles, está muito bem colocada. Mas o cenário da Patologia Clínica mudou. No passado, os laboratórios eram geridos por famílias, e eu costumava ter como residentes, os filhos de donos de laboratórios que dariam continuidade ao negócio. Hoje, com a fusão dos grandes laboratórios, houve uma redução de oferta de vagas para os profissionais da área no mercado de trabalho. Para completar, há o fator salarial do profissional que vai trabalhar em um laboratório, geralmente contratado para trabalhar 6 a 8 horas por dia, e que para alcançar um nível salarial satisfatório, precisa ter dois ou mais empregos.
É uma disciplina obrigatória no currículo das faculdades de medicina?
Dra. Leila Antonangelo: Não, não é obrigatória. A Patologia Clínica de maneira geral, tem pouca exposição na graduação. São poucas as faculdades de Medicina que têm Patologia Clínica no currículo e quando tem, é com pequena carga horária. Como há pouco espaço na graduação, expomos cada vez menos a especialidade, e como resultado natural, pouca exposição, pouco conhecimento, menos procura. Em muitas escolas a disciplina está vinculada a uma disciplina clínica. Na Escola Paulista de Medicina, a Patologia Clínica é vinculada à Clínica Médica, por exemplo. Na Unicamp está mais ligada à cadeira básica. No caso da Universidade de São Paulo, está vinculada ao Departamento de Patologia, com inserção no quarto ano médico.
Como avalia a atual formação dos médicos em relação à Patologia Clínica?
Dra. Leila Antonangelo: Depende muito, não é uma resposta simples. O que oferecemos ao aluno é muita informação e conteúdo. Mas partimos do pressuposto de que há alunos bons e os não tão bons, que não aproveitam tudo o que está disponível. Precisamos entender o quanto um residente entende dos ciclos de um exame laboratorial e não apenas da interpretação do resultado. O exame laboratorial é complemento de um raciocínio diagnóstico, que se segue a uma anamnese e exames físico bem feitos. Entretanto, a abertura indiscriminada de escolas médicas, com um cenário de má formação médica em muitas delas, conduz a uma solicitação abusiva e muitas vezes desnecessária de exames complementares, espoliando o paciente, sobrecarregando o laboratório e comprometendo o sistema de saúde.
A senhora comentou que a disciplina pode ser versátil, o que isso significa? E na prática, quais estratégias podem ser adotadas para alcançar e reter novos talentos?
Dra. Leila Antonangelo: Primeiramente, não existe base de decisão médica que não dependa de um exame de laboratório. Então, ela é fundamental em qualquer cenário clínico ou cirúrgico. E essa demanda só cresce, seja por conta do envelhecimento da população, que exige mais cuidados naturalmente, seja porque há constante inovação em tecnologia e grande avanço em pesquisa médica. A versatilidade é que a nossa disciplina pode complementar qualquer outra. Hoje no currículo novo, temos unidades curriculares. Por exemplo, temos uma unidade curricular de sistema respiratório, que se discute a doença, os métodos diagnósticos (laboratoriais, radiológicos e histológicos, entre outros) e o tratamento. Nesse sentido, seria mais racional a participação da Patologia Clínica em todas as unidades curriculares, e isso não ocorre na FMUSP. Outro ponto é que ela tem um papel muito próximo à cadeira básica. Não há um exame de bioquímica e imunoquímica, entre outros, que não tenha sido desenvolvido a partir de uma questão das ciências básicas. Também no campo da pesquisa, o laboratório clínico desempenha um papel fundamental, seja na pesquisa básica, seja como apoio para protocolos de pesquisa das várias especialidades. No HC, por exemplo, conduzimos centenas de protocolos externos de pesquisa em humanos e em animais em que o nosso laboratório é o apoio e a referência, fruto da qualidade dos exames oferecidos, consolidada pelas várias certificações de qualidade do laboratório.
Se pudesse implementar hoje uma mudança imediata nos currículos das faculdades para valorizar a disciplina, qual seria?
Dra. Leila Antonangelo: Na minha visão, a Patologia Clínica deveria ser uma disciplina transversal, do primeiro ao sexto ano com complexidade crescente. No primeiro ano atuaria com critérios mais básicos, no segundo ano o ensino mais relacionado à fisiopatologia das doenças, no terceiro e quarto anos aumentaria a complexidade, mas já com exposição ao diagnóstico de casos clínicos reais. No internato, já atuando com um olhar mais holístico, unindo o conhecimento adquirido no raciocínio clínico, com o uso racional de exames, de maneira a contribuir efetivamente com o diagnóstico, com a segurança do paciente e com o sistema público de saúde. O médico clínico tem conhecimento sobre o exame e sua indicação. O problema surge quando o resultado obtido não condiz com o raciocínio clínico dele. O que está errado, o raciocínio ou o exame do laboratório? A tendência é sempre pensar que o exame está errado e isso gera solicitações de repetição. Entretanto, muitas vezes ocorreu uma interpretação clínica equivocada. Por isso, é importante conhecer as fases de um exame, o problema de interferentes e problemas inerentes ao próprio exame. Um exame é constituído de três fases: fases pré-analítica, analítica e a pós-analítica, sendo que a pré-analítica compreende desde o pedido do médico, orientações de coleta, e a coleta propriamente dita. Na fase analítica, o exame está na área técnica para realização; a pós-analítica compreende desde a liberação do resultado até a interpretação e conduta pelo médico solicitante. A maioria dos erros dos exames laboratoriais acontece na fase pré-analítica, e são esses erros que o médico costuma desconhecer. Por exemplo, se o paciente está tomando determinado remédio, fazendo dieta ou fez uso de alguma droga, o coletador e o laboratório precisam conhecer, pois são fatores que podem interferir no resultado do exame. Como outro exemplo, citamos a dosagem de marcadores tumorais, que podem se elevar em outras situações clínicas não relacionadas a neoplasias. O desconhecimento dessa informação pode levar à solicitação de uma série de outros exames, às vezes mais invasivos, que não teriam indicação de serem solicitados. São pontos como esses que os médicos precisam saber discutir e, para isso, o relacionamento do corpo clínico com os patologistas clínicos é fundamental para o melhor uso do exame diagnóstico. Aqui no HC, temos um grupo de discussão para o uso racional de exames, composto por patologistas clínicos, clínicos, residentes, intensivistas e um estaticista, para discutir determinados exames que estejam sendo solicitados em demasia. O grupo se aprofunda na avaliação temporal dos pedidos, as indicações clínicas e as clínicas que mais solicitam. A partir das análises realizadas e dentro das boas prática médicas, podemos propor algoritmos de diagnóstico e/ou medidas educacionais e restritivas quando for o caso.
Por ser uma mulher, conquistar esse título é inspirador para outras médicas, cientistas? Qual seu olhar sobre a questão?
Dra. Leila Antonangelo: Não considero que em algum momento da vida acadêmica tive dificuldade por ser mulher, embora durante 80 anos só tenhamos tido diretores do sexo masculino. Sou favorável ao desenvolvimento pela competência, independente do gênero. Logicamente, na formação nas universidades durante muito tempo, houve um protagonismo do sexo masculino. Então não havia titulares mulheres. Mas de uns cinco anos para cá, estamos observando mudanças. A competência das mulheres está se sobressaindo e muitas estão alcançando postos de liderança e isto é muito positivo. Acredito que estamos conquistando um espaço considerável. Eu fui uma privilegiada na minha carreira porque pude conviver e aprender com a maioria dos diretores que passaram pelo laboratório. Agora sou a primeira mulher a dirigir o laboratório central, uma instituição constituída de 14 áreas técnicas, cinco áreas de apoio, que conta com 480 funcionários e que realiza 12 milhões de exames por ano.
O que a senhora falaria para estimular os jovens médicos à Patologia Clínica?
Dra. Leila Antonangelo: Primeiramente, que a Patologia Clínica é uma especialidade médica para graduandos em Medicina e que tem um programa de residência médica de quatro anos. Somos a única instituição no Brasil que conseguiu um quarto ano de residência, em que o aluno pode optar por se especializar em áreas diversificadas, como biologia molecular, genômica, oncohematologia ou gestão, entre outras. Você pode atuar em diversos campos de especialização, em gestão laboratorial, pesquisa básica, pesquisa clínica etc. É uma especialidade que permeia as especialidades clínicas e cirúrgicas, e atenderá àqueles profissionais que não querem seguir nas carreiras clínicas e cirúrgicas. Hoje eu diria para o jovem médico que ele precisa ter uma formação acadêmica sólida e ter um grande senso ético e humanístico. Eu sempre reforço para os meus alunos que eles não podem ser mais um, precisam ser muito bons no que vão fazer e nunca se acomodarem.
Sobre a Dra. Leila Antonangelo:
Graduada em Medicina pela Faculdade de Medicina de Catanduva (1979); Residência Médica e Título de Especialista em Patologia Clínica (1982) HCFMUSP; Doutorado em Ciências Biológicas (Medicina) pelo Departamento de Patologia da FMUSP (1992); Livre-Docência pelo Departamento de Cardiopneumologia, disciplina de Pneumologia – FMUSP e Professora Associada da disciplina de Patologia Clínica, Departamento de Patologia FMUSP. Atualmente Diretora Técnica de Saúde da Divisão de Laboratório Central e regente da disciplina de Patologia Clínica, tendo sido vice-diretora da Divisão de Laboratório Central de 2009 a janeiro de 2023 e chefe da seção de Citologia do Laboratório Central. É responsável pela Disciplina de Graduação em Medicina da FMUSP (MSP 4214, 4 ano), pela disciplina optativa (MSP 4018) e pela Liga de Patologia Clínica. Supervisora do Programa de Residência Médica em Patologia Clínica/Medicina Laboratorial e coordenadora do programa de Aprimoramento da Escola de Educação Permanente (Residência para Não médicos), HCFMUSP. Orientadora do programa de Pós-graduação e Membro da Comissão de Pesquisa do Departamento de Patologia. Coordenadora da Comissão de Ensino e Pesquisa da Divisão de Laboratório Central, HCFMUSP. Ocupa a 2 vice-presidência da Comissão Executiva (CoEx) de Residência Médica – COREME do HCFMUSP; Coordenadora do Comitê Científico de Líquidos Cavitários da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial. Responsável pelo Laboratório de Investigação Médica (LIM 03), HCFMUSP. Membro da Comissão de Ética em Pesquisa (Cappesq HCFMUSP), de 2010 a 2018. Tem experiência na área de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial com ênfase no diagnóstico etiológico de derrames cavitários e fatores prognósticos em câncer.